quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Fala a Loucura

Fala a LoucuraQue digam de mim tudo o que quiserem (porque eu não ignoro como a Loucura é, todos os dias, reduzida a pedaços, mesmo por aqueles que são, ainda de todos, os mais loucos) mas, no entanto, sou eu, eu só, que, com a minha influência divina, distribuo a alegria pelos deuses e pelos homens.
Com efeito, desde que apareci nesta numerosa assembleia, desde que me dispus a falar, não vi logo brilhar nos vossos olhos uma alegria nova e extraordinária? Não vi os vossos rostos desanuviarem-se? E as gargalhadas que de toda a parte se ouviram, não anunciaram a doce alegria que penetrou nos vossos corações, e o prazer que experimentastes com a minha presença? Agora, quando vos olho, parece-me ver os deuses de Homero, ébrios de néctar e de nepentes: em vez de estardes, como ainda há pouco, tristes e inquietos, como pessoas que acabavam de sair do antro de Trofónio.
(...)
Tal como o brilhante astro do dia, mal os seus primeiros raios dissipam as trevas que cobrem o horizonte, ou como a primavera, depois de um rigoroso inverno, leva atrás de si o louco rebanho dos doces zéfiros, e, imediatamente, tudo se modifica sobre a Terra, um colorido mais brilhante embeleza as coisas, e a natureza rejuvenescida apresenta, aos nossos olhos, um espectáculo mais agradável e mais risonho; do mesmo modo, a minha presença entre vós produziu uma mudança bem feliz, O que os grandes oradores têm enorme trabalho em realizar, com infindáveis estudados discursos, esta minha única presença fê-lo num instante: vistes-me, e imediatamente todas as vossas inquietações se dissiparam.
Sabei, antes de mais nada, que pouco me importam esses sábios que lá porque um homem se louva a si próprio, lhe chamam tolo e impertinente. Que lhe chamem louco, vá; mas concordem, ao menos, que procedendo assim se conduzem de maneira inteiramente conforme com esta qualidade. Na realidade, haverá coisa mais natural do que ver a Loucura exaltar os seus próprios méritos, e cantar ela, em pessoa, os seus louvores? Quem poderia, melhor do que eu, descrever-me tal como sou? A não ser que surja alguém que pretenda conhecer-me melhor do que a mim própria me conheço.
Além disso, agindo assim, creio conduzir-me muito mais modestamente que o comum dos sábios e dos grandes. Dominados por uma má vergonha não se atrevem a louvar-se a si próprios, mas geralmente chamam para junto de si um panegirista enjoativo, qualquer poeta palrador, que por dinheiro se compromete a louvá-los, isto é, a vender mentiras. No entanto, o herói pudibundo empertiga-se como um pavão, ergue arrogantemente a crista, assim que o seu gabador impudente se atreve a igualar aos deuses o mais desprezível dos tartufos. Quando propõe, como modelo perfeito de todas as virtudes, aquele que sabe que está cheio de todos os vícios, quando enfeita a gralha com as penas do pavão, quando tenta branquear a pele de um negro, quando se esforça por fazer passar uma mosca por um elefante... Enfim, faço o que diz o provérbio: «Se ninguém te louva, louva-te tu, a ti próprio».

pedaço do livro ...
O Elogio da Loucura, Erasmo de Roterdão ( foda)

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